segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Pandemônica: Capítulo 04

 

Uma série de autoficção, com trechos dos diários de Mônica, uma brasileira sobrevivendo à pandemia e ao caos que tomou conta do país, desde março de 2020

 

 

Quinta, 08 de julho de 2021

 Um avião passa no céu, fazendo um rastro de fumaça. Penso ser uma estrela cadente.

Se uma estrela cadente fosse, eu teria três pedidos: viver muitos anos, ser feliz e mudar o mundo. Coisa à toa.

Mas se tivesse um só, pediria, sem dúvida, pra viver muitos anos. Pra cair bastante, errar bastante, levantar bastante e seguir tentando acertar.

Porque viver nesse mundo é horrível, mas também é maravilhoso demais.

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Um lugar pra caminhar devagar

 Eu sinto muita falta de escrever sem nenhum propósito, sem pensar em post, tweet, vídeo ou qualquer outra forma de tonar essa atividade tão apaixonante em algo que possa ser apreciado. Eu sinto falta de escrever por escrever. Conversar comigo, enquanto desembolo os nós da minha cabeça sem pensamentos intrusivos que dizem "hum, se der menos de 2200 caracteres dá pra postar no instagram" ou "mas se ficar aqui no blog mesmo preciso pensar formar de anunciar nas redes". Preciso ser vista, preciso satisfazer, preciso ser apreciada. Sinto falta de só precisar escrever.

 

Pandemônica: Capítulo 03

 Uma série de autoficção, com trechos dos diários de Mônica, uma brasileira sobrevivendo à pandemia e ao caos que tomou conta do país, desde março de 2020

Terça, 24 de março de 2020

7º dia de quarentena 10:38

Quero dançar todos os dias pois cada dia vai ser mais difícil não pensar.

Quero dançar todos os dias pra manter aberto o canal de comunicação com meu corpo e eu possa entender do que ele precisa.

Quero dançar todos os dias pra fazer um movimento nessas horas em que me sinto com mãos e pés atados.

Quero dançar todos os dias porque não sei até quando vou poder fazer isso.

Pandemônica: Capítulo 02

Uma série de autoficção, com trechos dos diários de Mônica, uma brasileira sobrevivendo à pandemia e ao caos que tomou conta do país, desde março de 2020

Terça, 27 de julho de 2021

Notícias do dia

Talvez eu precise de muitos minutos de silêncio pra perceber que o tempo é uma coisa que estica e puxa, como quando a gente aumenta ou diminui a velocidade de um áudio no Whatsapp. O presente determina quanto tempo o tempo vai durar.

No presente, sento pra ver o céu mudar de cor rapidamente, nos minutos finais da tarde, enquanto tento ficar em silêncio e me perceber como essa mulher de quase 37 anos. Definitiva e oficialmente mais perto dos 40 que dos 30, vendo os 20 e poucos, que parecem ter sido ontem, ficarem pequenos na paisagem diante de tudo o que veio depois.

O que tem nesse caminho? Do “pico” da juventude pras portas da maturidade? Quem inventou esses limites e determinou essa geografia?

Eu me sinto subindo e descendo todos os dias. Abrindo e fechando portas durante todo o percurso, a cada passo dado. Quem me convenceu de que daqui é só pra baixo? Por que será que me deixei convencer? Passa o tempo, ficam as dúvidas.

A luz da tarde acaba, chega a noite. Mas daqui algumas horas, rápidas ou vagarosas, o sol volta. O ciclo recomeça, de novo e de novo…

Pandemônica: Capítulo 01

Uma série de autoficção, com trechos dos diários de Mônica, uma brasileira sobrevivendo à pandemia e ao caos que tomou conta do país, desde março de 2020.

12 de março de 2021

A gente já sabia que eventualmente o mundo vai acabar. Assim como todas as outras coisas, a nossa passagem por esse planeta vai chegar ao fim.

Eu acordo lendo e ouvindo notícias do fim do mundo há um ano. Há um ano milhares de mortes (agora diárias) pesam sobre a nossa cabeça. Há um ano a nossa efemeridade é jogada violentamente na nossa cara e, ainda assim, as pessoas parecem não ver.

Carregamos uma bomba-relógio de dor, cólera e medo na barriga há um ano, pronta para fatalmente explodir a qualquer momento.

Medo de perder nossas pessoas queridas, medo de não ter como pagar as contas, medo de sair na rua, de precisar de atendimento médico, medo de respirar. Medo de puxar o ar e não saber se ele não vem por conta de uma das crises de ansiedade diárias ou porque você se tornou mais um número na estatística assustadora de pessoas contaminadas.

E, de repente, respirar parece mesmo impossível porque a possibilidade de integrar o quantitativo mais apavorante de todos, o de pessoas mortas, tira o ar dos pulmões, o chão dos pés e a razão da cabeça. Razão que já virou artigo de luxo, entrando na lista das coisas vitais das quais não temos mais acesso, como imunização e oxigênio.

Eu assisti ao fim do mundo em vários cenários pós-apocalípticos fictícios e me perguntava que tipo de sobrevivente eu seria nessas situações mais extremas. Imaginei que a violência e a maldade tomariam conta de tudo, imaginei que haveria muita dor e morte, mas nunca pensei que veria acontecer de fato. Não pensei que a tortura viria de forma tão “sofisticada”, penetrando na cabeça e adoecendo o corpo através de atos de negligência e desprezo.

Pensei que quem sobrasse notaria o mal que tomou o mundo e lutaria contra ele, assim como nos filmes. Mas antes de infligir a dor, aplicam poderosos anestésicos, que nos mantém calmas e iludidas até o fim, quando nosso destino já está traçado, tal qual o do sapo na panela de água quente.

Pra quem tenta abrir mão dos narcóticos químicos e tecnológicos, “olá, insanidade”. E é assim que não me imaginava, mas me vejo no fim: sem chão para os pés, sem ar para respirar e observando as últimas gotas de lucidez se esvaírem, a cada dia que acordo e leio as notícias.


quinta-feira, 7 de julho de 2022

O feminismo punitivista é uma armadilha

 

O_feminismo_punitivista_é_uma_armadilha
Foto: Unsplash

 *Reprodução do artigo de opinião publicado no Portal Catarinas.

 Postado em 04/07/2022, 14:50


Não tem sido nada fácil ser mulher no Brasil nessas últimas semanas. Nunca foi, na verdade, mas a carga de misoginia, ódio e violência dos últimos acontecimentos demonstram que ser mulher e brasileira é doloroso, arriscado e assustador.

Uma menina de 11 anos teve seu direito legal ao aborto negado e foi coagida por representantes do judiciário a manter a gestação indesejada e extremamente arriscada até o fim; após vazamento criminoso de suas informações médicas, uma atriz de 21 anos foi forçada a levar a público a violência sexual que sofreu, uma vez que, apesar de não ter lançado mão de seu direito ao aborto, também foi alvo de ataques perversos, por ter escolhido parir e entregar a criança para a adoção. O que exigiam de uma, não foi suficiente para a outra.

Num julgamento inquisitório sem direito a defesa, ambas foram condenadas, apedrejadas em praça pública e lançadas à fogueira por “cidadãos de bem”, que mascaram suas pulsões de ódio com discursos vazios de “amor à vida”.

De carona nas polêmicas e na tendência conservadora que recentemente, com uma mudança de jurisprudência, retirou o direito ao aborto de milhares de mulheres estadunidenses, aconteceu no Brasil uma audiência pública, convocada pelo governo federal, com o objetivo único de dificultar ainda mais o acesso ao aborto legal no país, endossando argumentos falsos e estigmatizantes, presentes em uma norma técnica emitida pelo Ministério da Saúde sobre o atendimento a ser prestado na realização do procedimento.

Quando nos deparamos com casos como os que estiveram nos holofotes recentemente (e que são mais comuns do que queremos imaginar), nos compadecemos com essas meninas e mulheres e retornamos às nossas próprias experiências, conscientes de que o medo é um elemento presente nas vivências de todas as mulheres e que não devemos nos esquecer dele.

Na dificuldade de se elaborar sentidos para este estado de barbárie, clamamos por justiça. Mas não qualquer justiça, justiça institucional, penal, vingativa. Para a juíza e a promotora que pressionaram a menina, punição. Para a enfermeira, o fofoqueiro e a futura candidata, mais do mesmo. Afinal, difamação é crime, quebra de sigilo é crime, constranger uma criança daquela maneira, se não for, certamente deveria ser crime, certo?

A experiência nos mostra que estamos cada vez mais ativas, combatentes e resistentes na luta por direitos que contemplem as mulheres, mas, ainda assim, em muitos momentos, a sensação predominante é de estagnação e retrocesso. Os ataques que chegam de várias vias e marcam sua presença nas relações cotidianas mostram que lutamos muito, mas estamos perdendo feio. No topo disso tudo, tenho uma triste notícia para dar: não é o sistema de justiça criminal que vai nos ajudar a reverter essa situação. 

É preciso lançar um olhar crítico sobre as reais possibilidades de libertação por um sistema que cria crimes e aplica leis de forma misógina, racista e classista sob o pretexto de promover segurança e proteção, ao mesmo tempo que nos criminaliza e impede que exerçamos autonomia sobre nossos próprios corpos.

Estamos falando de um sistema que ao longo de sua história validou aparelhos ideológicos e normas sociais que estabeleceram as mulheres como propriedade do homem da família patriarcal, juridicamente autorizado a dispor da vida delas como bem entendesse.

Um sistema que há pouquíssimos anos validava o casamento com a vítima como causa extintiva da punibilidade para o estupro. 

Entre outras engrenagens, o modo de produção capitalista fomenta o sistema patriarcal como mecanismo colonial de dominação que visa a manutenção de mulheres dóceis, controladas e obedientes. A violência escancarada sob processos punitivistas atua para que não haja rotas de fuga dos papéis determinados a mulheres e utiliza a manutenção de um estado de medo e temor como ferramenta deste processo: nos fazem tementes à lei, à Deus e a tudo mais que for possível criar para aniquilar a emancipação de uma mulher sobre sua própria existência enquanto sujeito de direitos. 

Enquanto nos forçam a combater pela via institucional os ataques que sofremos, buscando legitimar estratégias que sabemos que não funcionam, como a criação de leis populistas que não serão cumpridas e a aplicação de penas que não ressocializam nem solucionam conflitos, as armas do sistema punitivo estão apontadas para nós. Insistimos em validar as regras de um jogo que foi moldado para nos fazer perder. Quando não perdemos na legislação, perdemos na interpretação da norma ou no tratamento que recebemos no processo.

Sofremos violência e, ao buscarmos alguma reparação, somos desacreditadas, revitimizadas, criminalizadas, repetidamente punidas. Mas, ainda assim, a ideologia de um sistema de justiça imaculado e imparcial está tão impregnada culturalmente que, mesmo que haja notícia diária de que a realidade que se apresenta é abissalmente oposta à imagem que é vendida, o ideário punitivista se faz presente como único recurso capaz de fazer cessar os atos violentos e promover justiça social.

Ao discutir sobre as problemáticas históricas dos sistemas prisionais, Angela Davis aponta sobre a dificuldade de visualizarmos um mundo sem prisões e meios punitivos para lidarmos com situações de conflito. A ilusória libertação a partir de uma compreensão punitivista se torna mais uma forma de acorrentamento que domina corpos e pensamentos, prendendo a um infindável ciclo de violências múltiplas que não deixam espaços para se pensar em caminhos que tragam à tona as construções do bem-viver por meio de atuações que abracem o cuidado amplo, a emancipação e estratégias políticas que possam afetar os pilares das estruturas de opressão.

Buscar respostas no sistema punitivo é uma armadilha. Não é um sistema feito para nós.

É um sistema feito por eles e para eles, apresentado como a resposta universal para todo tipo de problema que o capitalismo patriarcal não é capaz de resolver. O próprio conceito de justiça que carregamos se faz equivocado a partir da lógica de causa e efeito imediato.

É necessário trazermos a compreensão crítica para além das prisões e binaridades simplistas entre bem e mal, uma vez que entre mocinhos e bandidos há o abismo de ambivalências que marcam nossa condição humana. A mera punição individual jamais irá findar o sofrimento que diz respeito a toda uma sociedade e não somente a um indivíduo. A condenação de fulano, a prisão de sicrano, são exceções que perpetuam a regra de manutenção das estruturas de poder, ao mesmo tempo que causam uma falsa satisfação, uma sensação de conforto tão efêmera quanto a última manchete do dia. 

Pensar soluções para a violência contra a mulher sem pensar em punição e prisões é um desafio, um exercício de imaginação urgente sobre o qual precisamos dedicar nossos esforços se quisermos nos livrar do fardo de ter de apagar incêndios por todos os lados, vindos da grande fogueira inquisitória que alimentamos com nosso punitivismo.

Enquanto depositarmos nossas esperanças nas ferramentas de um sistema cuja razão de existir é exercer controle e dominação, nossa perspectiva de futuro acabará estraçalhada nessa máquina de moer gente, que sustenta um modelo de sociedade que tem a violência institucional como instrumento para restringir, comandar e assassinar quem diverge das verdades hegemônicas, daquilo que é estabelecido como “normal”.

O caminho da institucionalidade deve ser disputado, como via disponível na sociedade em que vivemos hoje, mas precisamos aumentar a nossa capacidade de pensar fora da caixa do encarceramento e do punitivismo, ousar criar outras saídas, outros processos, outros sistemas.

Se queremos uma sociedade menos violenta, não faz sentido validar a violência como única resposta possível.

É preciso aprofundar o debate e trabalhar estratégias de prevenção que sejam mais eficazes que uma ameaça vazia de pena. Chegar na raiz dos problemas, descobrir as causas de sermos alvo de violências epidêmicas e erradicar essas causas. 

A potência dos múltiplos movimentos feministas nos atuais processos de transformações sociais são fundamentais na avaliação do que construímos como conceitos de justiça e liberdade. É na luta que nos encontramos, assim como encontramos quem partilha das mesmas dores.

As respostas irão aparecer a partir da criação de espaços seguros de compartilhamento de nossas vivências individuais e coletivas e, principalmente por meio da marcação de lugares de resistência que trazem a palavra à tona no lugar do ato violento.

Por fim, trago algumas questões para que este diálogo não cesse, ao contrário, permaneça vivo e ativo em nossas construções: Você se sente protegida pelo sistema penal? Você acredita que a pena é uma forma eficaz de reparação e responsabilização? Por que seguimos presas nessa ideia? De quais outras ferramentas podemos lançar mão, diante das complexas circunstâncias que envolvem as condutas atualmente descritas como crime? 

São reflexões necessárias, que parecem óbvias, mas talvez não sejam.

 

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Você suportaria ser torturada só mais um pouquinho?

Suportaria-mais-um-pouquinho-caso-juiza-sc-aborto
Arte @bealake

 

  *Reprodução do artigo de opinião publicado no Portal Catarinas.

 

Postado em 23/06/2022, 11:18

Lívia Reis, especialista em Ciências Criminais, analisa a violação de direitos da menina de onze anos que teve o direito ao aborto legal negado, em Santa Catarina.

Imagine que você foi estuprada e, desse estupro, ocorreu uma gestação que, além de obviamente indesejada, coloca a sua vida em risco. Você vai ao hospital, na tentativa de exercer seu direito legal de interromper essa gravidez. Mas, em vez de ser acolhida e apoiada, você é sequestrada. Levada contra a vontade para longe da sua casa, da sua família e da sua rede de apoio por mais de um mês, enquanto tentam te induzir a continuar vivendo esse pesadelo até o fim da gestação. Como se sentiria ao viver isso? E se você fosse uma menininha de 10 anos de idade? Ou fosse sua filha nessa situação?

Pode parecer apelativo pedir que nos coloquemos no lugar da criança e da mãe para tentar entender minimamente a dimensão do sofrimento imposto à essa família, mas diante do tratamento desumanizante ao qual elas vêm sendo submetidas, é preciso, antes de mais nada, resgatar nossa empatia para falar desse assunto. É preciso perguntar “e se fosse você?” para lembrar que essa menina e essa mãe são pessoas, pessoas que estão sendo torturadas pelo Estado diante dos nossos olhos e obrigadas a suportar “só mais um pouquinho”.

Esse caso choca, mas não surpreende, pois não é o primeiro e infelizmente não será o último. O comportamento da magistrada, da promotora e de todos que respaldaram a sequência de absurdos dessa situação – apesar da ausência de fundamentação legal e da evidente distorção na interpretação das normas e dos conceitos – escancara o retrocesso que estamos vivendo e a insistência na manutenção de uma visão objetificada da mulher, cuja função social é limitada ao cuidado e à reprodução.

É inquestionável que a menina foi vítima de estupro de vulnerável, pois quando a vulnerabilidade se dá em razão da idade esse critério é absoluto e não pode ser relativizado (apesar de, para a surpresa de ninguém, haver decisões judiciais que digam o contrário). Nesses casos, o direito ao aborto legal também deveria ser absoluto, pois o Código Penal é bastante claro ao autorizar a realização do procedimento, a qualquer tempo, em caso de gravidez resultante de estupro ou risco de morte da gestante, requisitos alternativos, mas que nessa situação específica se acumulam, o que torna a violação ainda mais grave.

O terror psicológico na perversidade dos argumentos, no uso da palavra “bebê” para se referir ao feto e na tentativa de culpabilização da vítima sob alegações falsas a respeito da realização do procedimento, chegando ao disparate de chamar o aborto legal de “homicídio”, demonstram a total falta de limites da ofensiva ideológica capitalista, conservadora e cristã sobre os nossos corpos. Enquanto movimentos progressistas debatem se é o momento ou não de falar sobre o assunto, quem está no poder atua sem o menor pudor para impor uma visão de mundo essencialista, cruel e desonesta, que intenta nos privar da nossa humanidade e dos nossos direitos.

“Deixa eu cuidar dela”, disse a mãe na audiência. A única pessoa que estava realmente preocupada com o bem-estar da criança teve seu direito de amparar a filha nesse momento tão difícil negado, foi punida com o afastamento quando mais precisava estar com ela e obrigada a presenciar a criminalização, humilhação e desumanização da sua menininha.

É revoltante e doloroso testemunhar toda a revitimização a que estão submetendo uma criança real, sob o pretexto de “salvar” um “bebê” fictício, imaginário, que só existe na cabeça de quem, hipocritamente, se dispõe a praticar tortura em nome de um “direito à vida” abstrato e fantasioso. Chama a atenção também o fato de que até mesmo a opinião do estuprador, chamado de “pai da criança”, parecer ter mais peso na decisão que a vontade da vítima.

Porém, é importante entender que esse não é um caso isolado. As recusas de realização do procedimento, a morosidade nas respostas, a institucionalização da vítima e a postura de outras instâncias de poder a respeito do tema constituem estratégias para prolongar forçadamente o tempo de gestação dessas meninas e mulheres, até que não tenham outra alternativa que não seja levar a gravidez a termo. Não por acaso, até mesmo o Ministério da Saúde tem se dedicado a emitir documentos com informações falsas e juridicamente incorretas sobre o assunto. Não é equívoco, é projeto.

Um projeto que não poupa nem mesmo meninas que são crianças no sentido legal e biológico, mas que, por já terem alcançado a idade reprodutiva, são forçadas a suportar em seus pequenos corpos todas as dores de ser uma mulher “feita”, por um judiciário que trata essa criança como uma máquina de reprodução, que “fará casais felizes”, um útero sem corpo e sem alma.

Diante de tal situação, precisamos nos perguntar, onde estava esse Estado tão diligente quando a violência contra a menina foi cometida? Que medidas são tomadas pelas instituições para evitar que crianças como ela sofram violência sexual e engravidem, sem o menor entendimento do que aconteceu? Por que realizar um aborto é considerado mais grave que praticar um estupro? Quem se importa com essas vidas, que representam mais de 70% das vítimas desse tipo de crime?

Precisamos questionar não só quando começa a vida humana, mas também quando essa vida deixa de ter valor e passa a ser aceitável que a sociedade e as instituições a violentem, independentemente da idade. Por que o Estado não está cuidando dessa criança e de tantas outras na mesma situação, mas quer jurisdicionar sobre o útero delas? Que outro propósito haveria nessas ações que não seja limitar essas meninas, desde muito cedo, ao papel social reservado às mulheres nesse sistema? O papel de um corpo que não tem de querer, que existe para servir, gestar, parir e cuidar, nada mais.

Pandemônica: Capítulo 04

  Uma série de autoficção, com trechos dos diários de Mônica , uma brasileira sobrevivendo à pandemia e ao caos que tomou conta do país, des...