segunda-feira, 27 de junho de 2022

Você suportaria ser torturada só mais um pouquinho?

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Arte @bealake

 

  *Reprodução do artigo de opinião publicado no Portal Catarinas.

 

Postado em 23/06/2022, 11:18

Lívia Reis, especialista em Ciências Criminais, analisa a violação de direitos da menina de onze anos que teve o direito ao aborto legal negado, em Santa Catarina.

Imagine que você foi estuprada e, desse estupro, ocorreu uma gestação que, além de obviamente indesejada, coloca a sua vida em risco. Você vai ao hospital, na tentativa de exercer seu direito legal de interromper essa gravidez. Mas, em vez de ser acolhida e apoiada, você é sequestrada. Levada contra a vontade para longe da sua casa, da sua família e da sua rede de apoio por mais de um mês, enquanto tentam te induzir a continuar vivendo esse pesadelo até o fim da gestação. Como se sentiria ao viver isso? E se você fosse uma menininha de 10 anos de idade? Ou fosse sua filha nessa situação?

Pode parecer apelativo pedir que nos coloquemos no lugar da criança e da mãe para tentar entender minimamente a dimensão do sofrimento imposto à essa família, mas diante do tratamento desumanizante ao qual elas vêm sendo submetidas, é preciso, antes de mais nada, resgatar nossa empatia para falar desse assunto. É preciso perguntar “e se fosse você?” para lembrar que essa menina e essa mãe são pessoas, pessoas que estão sendo torturadas pelo Estado diante dos nossos olhos e obrigadas a suportar “só mais um pouquinho”.

Esse caso choca, mas não surpreende, pois não é o primeiro e infelizmente não será o último. O comportamento da magistrada, da promotora e de todos que respaldaram a sequência de absurdos dessa situação – apesar da ausência de fundamentação legal e da evidente distorção na interpretação das normas e dos conceitos – escancara o retrocesso que estamos vivendo e a insistência na manutenção de uma visão objetificada da mulher, cuja função social é limitada ao cuidado e à reprodução.

É inquestionável que a menina foi vítima de estupro de vulnerável, pois quando a vulnerabilidade se dá em razão da idade esse critério é absoluto e não pode ser relativizado (apesar de, para a surpresa de ninguém, haver decisões judiciais que digam o contrário). Nesses casos, o direito ao aborto legal também deveria ser absoluto, pois o Código Penal é bastante claro ao autorizar a realização do procedimento, a qualquer tempo, em caso de gravidez resultante de estupro ou risco de morte da gestante, requisitos alternativos, mas que nessa situação específica se acumulam, o que torna a violação ainda mais grave.

O terror psicológico na perversidade dos argumentos, no uso da palavra “bebê” para se referir ao feto e na tentativa de culpabilização da vítima sob alegações falsas a respeito da realização do procedimento, chegando ao disparate de chamar o aborto legal de “homicídio”, demonstram a total falta de limites da ofensiva ideológica capitalista, conservadora e cristã sobre os nossos corpos. Enquanto movimentos progressistas debatem se é o momento ou não de falar sobre o assunto, quem está no poder atua sem o menor pudor para impor uma visão de mundo essencialista, cruel e desonesta, que intenta nos privar da nossa humanidade e dos nossos direitos.

“Deixa eu cuidar dela”, disse a mãe na audiência. A única pessoa que estava realmente preocupada com o bem-estar da criança teve seu direito de amparar a filha nesse momento tão difícil negado, foi punida com o afastamento quando mais precisava estar com ela e obrigada a presenciar a criminalização, humilhação e desumanização da sua menininha.

É revoltante e doloroso testemunhar toda a revitimização a que estão submetendo uma criança real, sob o pretexto de “salvar” um “bebê” fictício, imaginário, que só existe na cabeça de quem, hipocritamente, se dispõe a praticar tortura em nome de um “direito à vida” abstrato e fantasioso. Chama a atenção também o fato de que até mesmo a opinião do estuprador, chamado de “pai da criança”, parecer ter mais peso na decisão que a vontade da vítima.

Porém, é importante entender que esse não é um caso isolado. As recusas de realização do procedimento, a morosidade nas respostas, a institucionalização da vítima e a postura de outras instâncias de poder a respeito do tema constituem estratégias para prolongar forçadamente o tempo de gestação dessas meninas e mulheres, até que não tenham outra alternativa que não seja levar a gravidez a termo. Não por acaso, até mesmo o Ministério da Saúde tem se dedicado a emitir documentos com informações falsas e juridicamente incorretas sobre o assunto. Não é equívoco, é projeto.

Um projeto que não poupa nem mesmo meninas que são crianças no sentido legal e biológico, mas que, por já terem alcançado a idade reprodutiva, são forçadas a suportar em seus pequenos corpos todas as dores de ser uma mulher “feita”, por um judiciário que trata essa criança como uma máquina de reprodução, que “fará casais felizes”, um útero sem corpo e sem alma.

Diante de tal situação, precisamos nos perguntar, onde estava esse Estado tão diligente quando a violência contra a menina foi cometida? Que medidas são tomadas pelas instituições para evitar que crianças como ela sofram violência sexual e engravidem, sem o menor entendimento do que aconteceu? Por que realizar um aborto é considerado mais grave que praticar um estupro? Quem se importa com essas vidas, que representam mais de 70% das vítimas desse tipo de crime?

Precisamos questionar não só quando começa a vida humana, mas também quando essa vida deixa de ter valor e passa a ser aceitável que a sociedade e as instituições a violentem, independentemente da idade. Por que o Estado não está cuidando dessa criança e de tantas outras na mesma situação, mas quer jurisdicionar sobre o útero delas? Que outro propósito haveria nessas ações que não seja limitar essas meninas, desde muito cedo, ao papel social reservado às mulheres nesse sistema? O papel de um corpo que não tem de querer, que existe para servir, gestar, parir e cuidar, nada mais.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

STJ: Aumento de pena em casos de violência doméstica praticada sob efeito de bebida alcoólica

 

A cachaça é genuinamente brasileira - Pasto Extraordinário

Recentemente, uma decisão da Sexta Turma do STJ proferiu entendimento no sentido de que, em casos de violência doméstica, a embriaguez pode ser considerada uma circunstância judicial negativa e, por isso, praticar lesão corporal sob o efeito de bebida alcoólica permitiria o aumento da pena base.

O texto menciona entendimento já consolidado na Corte de que “a embriaguez voluntária ou culposa do agente não exclui a culpabilidade, sendo ele responsável pelos seus atos mesmo que, ao tempo da ação ou da omissão, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Aplica-se a teoria da actio libera in causa, ou seja, considera-se imputável quem se coloca em estado de inconsciência ou de incapacidade de autocontrole, de forma dolosa ou culposa, e, nessa situação, comete delito”.

Ou seja, a partir do momento em que o agente “escolhe” estar embriagado, independente das circunstâncias e do grau de embriaguez, será penalizado (com aumento) pelo cometimento do delito, ainda que no momento dos fatos sua capacidade esteja reduzida ou mesmo anulada.

Se estivéssemos falando apenas de responsabilização e buscando formas realmente eficientes de solução do conflito, esse entendimento talvez fosse razoável. Mas estamos falando de um sistema automatizado por regras abstratas, que não trata as partes como pessoas, mas como números e letras em pilhas de processos, para as quais são aplicadas fórmulas matemáticas, com poder de mudar a vida delas para sempre.

Dito isso, proponho que façamos um exercício, uma reflexão sobre os possíveis alcances e consequências de uma decisão como essa, em especial no que diz respeito a pessoas que se embriagam de forma contumaz, e que nem sempre são compreendidas como inimputáveis.

Decisões como essa facilitam a penalização e a estigmatização de pessoas por um problema de saúde que elas têm, não raramente relacionado à condição social. É uma decisão que, como todas as outras proferidas nesse sentido, prejudicará majoritariamente homens negros e pobres, pois, em razão da seletividade e do racismo estrutural, são eles a “clientela preferencial” do sistema penal, representando aproximadamente 65% das pessoas encarceradas.

Em vez de aplaudir mais um reforço de medidas punitivas vazias e ineficientes poderíamos estar nos perguntando o seguinte: Como exatamente o aumento de pena vai ajudar? Como esse tipo de decisão resolve a questão da violência doméstica?

O que esse tipo de providência oferece de contrapartida para a vítima? Será que mais uma (entre as tantas) ameaça abstrata de aumento de pena é ferramenta eficaz para combater a violência doméstica? O consumo de álcool é a causa dessa violência?

Talvez seja possível dizer que, naquele caso específico, a mulher estaria protegida das agressões daquele agente específico, mas não se pode esquecer que o sistema também é preconceituoso e seletivo com as mulheres em situação de violência, portanto, não é difícil perceber que ameaça de pena não é, nem de longe, garantia de prisão ou condenação. Além disso, o punitivismo não trata o problema da violência na raiz e não oferece nada como contrapartida no sentido de erradicar novas possibilidades de violência. Ainda que aquele homem seja temporariamente “neutralizado”, a prática de violência contra a mulher é diária e generalizada, portanto, nada impede que essa vítima cruze com outro homem posteriormente e sofra violências tão ou mais graves que as anteriores.

Ameaça e aumento de pena não são garantia de segurança, pois a violência de gênero é estrutural, sistêmica, epidêmica.

Então, precisamos investigar mais a fundo e pensar: Por que agredir a companheira é uma consequência da embriaguez para tantos homens? O que é essa agressão se não também uma forma de punição e “correção”? Será que em vez de perpetuar esse ciclo não deveríamos estar buscando formas de rompê-lo?

Punitivismo e medidas punitivistas não passam de vingança pura e simples. Precisamos de mais que isso, precisamos de algo diferente disso. Pois a experiência nos conta que, para os fins que nós mulheres, como vítimas inevitáveis dessa violência sistêmica, almejamos e buscamos, para a proteção e reparação de que necessitamos, essa fórmula que vem sendo aplicada não serve, não resolve, não melhora em nada nossa situação.

É preciso focar na criação de condições estruturais que reduzam a violência, como políticas públicas de emancipação, que permitam que a mulher não seja dependente emocional e financeiramente do parceiro e que possa deixar um lar onde sua segurança está em risco, sem precisar sofrer outros tipos de violência e privações.

De que outras formas podemos evitar que isso aconteça? A pena é a única resposta possível?

Pensar em outras formas de combate à violência de gênero é deixar de apagar incêndios pontuais e tratar o problema como um todo. O punitivismo foca apenas nos casos de violência que chegam ao judiciário e sabemos que esses são a minoria, pois a cifra oculta (número de casos não reportados às autoridades) é gigantesca quando falamos de violência contra a mulher.

Quantas de nós já sofremos algum tipo de violência em maior ou menor grau? Quantas dessas violências reportamos ao judiciário? Basta parar para pensar.

E é assim porque instintivamente sabemos que o sistema atual não é capaz de nos oferecer uma resposta adequada. E sabemos também que além de racista e classista, o judiciário também é muito machista e escolher reportar um crime significa, em grande parte dos casos, precisar passar por revitimização, estigmatização e culpabilização.

É preciso focar em métodos efetivos de prevenção, em vez de esperar o resultado para agir. Para o alcoolismo, inegável potencializador da violência, mas não necessariamente causa dela, tratamento, em vez de punição. No lugar do aumento de pena, trabalhar no combate das causas estruturais do abuso de álcool e outras substâncias como o racismo, a pobreza, o desemprego, a fome. Buscar soluções coletivas, com o envolvimento de todas as partes afetadas, autor, vítima e comunidade.

Da minha parte, creio que não seja necessário mais que alguns minutos de reflexão para atestarmos que ameaça de pena não é método eficaz de prevenção. A pergunta que fica é: até quando vamos seguir engolindo esse discurso demagogo quando vivemos essa ineficácia na pele diariamente?


P.S.: Enquanto escrevo esse post, o Presidente da República assina um decreto de indulto completamente ilegal e inconstitucional para revogar decisão que condena um de seus aliados a mais de 8 anos de prisão e perda dos direitos políticos. Ao que tudo indica, não sofrerá qualquer tipo de punição ou sequer mísera responsabilização por isso. É assim que as instituições funcionam, sob o véu de um sistema criado para proporcionar justiça, homens brancos no poder seguem saindo incólumes de praticamente qualquer crime. É nesse sistema que confiamos tanto para nos proteger? Vamos seguir endossando essa lógica branca, masculina e dominadora, ou começaremos a questionar a que destinos ela está nos levando?

Pandemônica: Capítulo 04

  Uma série de autoficção, com trechos dos diários de Mônica , uma brasileira sobrevivendo à pandemia e ao caos que tomou conta do país, des...